Introdução

 
Na problemática do perdão, que aqui analisamos, não se pretende uma abordagem do ponto de vista moral ou religioso. A nossa perspectiva foca-se no potencial terapêutico do perdão. Importa-nos o seu contributo para a saúde integral do ser humano, ou seja, a promoção e conservação do seu bem-estar físico, mental, emocional e espiritual.
No sistema de cura criado por Alex Loyd (Healing Codes)[i], o Perdão é a primeira do conjunto de 12 categorias que são objecto do trabalho de cura[ii].  O Perdão é também uma das três categorias que são designadas como inibidoras da vida, da saúde e da prosperidade, sendo as outras duas Crenças não Saudáveis e Comportamentos Prejudiciais.
Problemas de perdão não resolvidos, para além de serem fonte primária de doença, dificultam ou impedem mesmo a cura. Segundo Bem Jhonson (http://www.meetdrben.com/ ), um reputado especialista americano no tratamento do cancro, parte dos seus doentes acabam por morrer por não serem capazes de superar um problema de perdão.
Segundo Alex Loyd, o perdão deve considerar três possíveis destinatários: o próprio paciente, os outros e Deus. Assim, o paciente deverá questionar-se se tem problemas de perdão para consigo próprio, para com os outros e para com Deus.
Alex refere-se ao Deus de inspiração cristã, todavia sem conotação com uma religião específica. É nosso entendimento que faz sentido que o lugar de Deus possa ser tomado por um outro  poder superior com o qual as pessoas tenham uma ligação espiritual. Há quem adopte uma hipotética Consciência Cósmica como substituto de Deus.
 

1. Ter um problema de perdão

O não perdão em relação a alguém não requer que o tenhamos o assumido no nosso íntimo ou o tenhamos declarado. Grande parte dos problemas de perdão que nos podem vir à consciência quando adultos, frequentemente em idade já adiantada, têm a ver com experiências da infância e com pessoas que se relacionaram connosco, podendo essas pessoas estar hoje presentes ou não na nossa vida. Não houve certamente nesses casos uma tomada de consciência e uma declaração de não perdão. A ausência de consciência ou a sua não explicitação  – inexistência de uma formulação do género “eu não te perdoo” -, não significa que não exista um problema de perdão para resolver.
Ter um problema de perdão, o não perdão, é sentir emoções negativas em relação a alguém cujos actos ou omissões nos causaram danos. Tais emoções podem ser ódio, raiva, vingança, abandono, ressentimento, desamor, ansiedade, traição, desprezo, desonra, medo, culpa, deslealdade, amargura, humilhação, inferioridade, ingratidão, sem valor, solidão, rejeição, tristeza, vergonha, etc. O estado de não perdão revela-se então sob a forma de desconforto emocional.
Por sua vez, o estado de perdão permite-nos recordar os mesmos factos ou omissões, que nos causaram danos, em paz interior, não sentindo já aquelas emoções negativas, portanto, sem desconforto emocional. Falamos então de dois estados: o de não perdão e o de perdão.
 

2. Perdoar: um processo de transmutação emocional

Entre o estado de não perdão e o estado de perdão há um caminho a percorrer, que pode passar por diferentes estados intermédios. Esse caminho é um processo dinâmico – o processo de perdão.
Perdoar não é um acto de vontade, não é uma decisão tomada quando se quer[iii], não é uma declaração que se faz junto de determinada pessoa. Perdoar não é um fenómeno racional equivalente uma decisão seguida de uma acção. Por isso, o não perdão versus perdão não é uma dicotomia; estamos, sim, perante dois polos de um continuum, sendo necessário percorrer um caminho de um polo ao outro no processo de perdão.
Os estados de não perdão e de perdão condicionam as nossas acções e comportamentos, mas antes de mais eles manifestam-se interiormente em termos emocionais. O processo de perdão é pois um processo emocional. O elevado desconforto inicial vai dando lugar a níveis de desconforto emocional de intensidade gradualmente menores[iv] até se atingir o estado de perdão que corresponde a uma sensação de alívio, de paz interior, de leveza, de alegria e de bem-estar.
Assim, o desconforto emocional do não perdão transforma-se em algo de natureza diferente ao ser alcançado o perdão. Perdoar, ou seja, o processo do perdão, é por isso um processo de transmutação emocional. Esse processo pode concluir-se em tempo muito curto, outras vezes leva um tempo considerável.
 

3. Formas de resistência à abordagem terapêutica do perdão

Grande parte das pessoas apresenta alguma resistência inicial na abordagem terapêutica do perdão. A nossa experiência põe em evidência quatro diferentes atitudes de resistência:
– existem pessoas que dizem não ter problemas de ausência de perdão e, por vezes, apresentam factos da sua vida que pretendem demostrar que são pessoas bondosas;
– outras pessoas têm dificuldade em se abrir para o processo do perdão em relação a pessoas que amam, já falecidas, sendo os pais um caso típico;
– há pessoas que dizem não querer perdoar, por considerarem que o mal que alguém lhes fez não merece perdão;
– outras pessoas dizem que não são capazes de perdoar, que isso está para além da sua vontade ou das suas forças.
 

3.1. As pessoas que de imediato dizem não ter problemas de perdão

Neste caso estamos perante uma visão que distorce a natureza da questão: ter ou não problemas de perdão não se coloca em termos de se ser boa ou ser má pessoa. Existem pessoas bondosas que, por circunstâncias da sua vida, têm gravado na sua mente e nas células do seu organismo, a crença de que não são boas pessoas. Tais pessoas, inconscientemente, não se perdoam por algo que fizeram no passado, pode ser algo racionalmente irrelevante, mas que do ponto de vista emocional deixou naquela época da sua vida uma marca negativa importante. Essas pessoas tenderão a culpabilizar-se no seu quotidiano de forma injustificada, e esse peso impede-as de se libertarem para a alegria e o desfrute da vida.
É pois necessário pôr de lado ideias pré-estabelecidas, para que seja possível abordar-se a questão do perdão da forma mais benéfica possível para cada pessoa. Duas condições são necessárias para que as pessoas adoptem uma atitude adequada:
– admitir que os problemas de perdão frequentemente se situam no domínio do inconsciente, e se manifestam sob a forma de emoções que mascaram o problema. Não havendo consciência de ausência de perdão, é desejável que se faça a devida exploração que poderá eventualmente trazer à superfície problemas que não eram reconhecidos. Por exemplo, a raiva ou irritação em relação a alguém provavelmente tem subjacente um problema de perdão.
– é necessária uma atitude de grande humildade e honestidade do paciente, desde logo perante si próprio(a), no reconhecimento dos seus problemas de perdão. O não perdão não pode ser motivo de vergonha ou de um auto-julgamento, que leve a pessoa a não admitir o problema sequer perante si própria. O único propósito da terapia é a cura, o que não passa por qualquer juízo moral. Aliás, nos problemas de perdão o que é mais frequente é um eventual juízo negativo recair sobre outra pessoa e não no próprio.
 

3.2. O perdão em relação a pessoas amadas já falecidas

Os pais já falecidos são um caso típico em relação aos quais certas pessoas têm dificuldade em se abrir para o processo do perdão. O facto de gostarem de seus pais e serem estes já falecidos, faz com que certas pessoas sintam como uma espécie de sacrilégio referirem comportamentos deles que lhes deixaram marcas emocionais negativas. Há um sentimento misto de ingratidão e traição do amor que por eles nutrem.
Todavia no processo do perdão não estão em causa nem o amor nem a gratidão que as pessoas sintam pelos pais ou outras pessoas que muito estimam. Pelo contrário, o resultado do processo do perdão mostra que tais sentimentos ficam mais límpidos e melhor nutridos. Para além do benefício para o paciente que se procura através do perdão, os sentimentos de afecto para com o ente querido perdoado ficam libertos de algum ruído emocional que embaciava a memória dessa pessoa. Isso é igualmente verdadeiro para o caso inverso, ou seja, a situação em que o paciente precisa construir o sentimento de estar perdoado por parte de alguém que sente ter partido sem o perdoar por algo de que se sinta culpado.
 

3.3. As pessoas que não querem perdoar

Há pessoas que dizem não querer perdoar. Podemos identificar três factores que podem determinar esta atitude: o orgulho, o sentido de justiça e a ideia de que outro deve ser corrigido ou corrigir-se.
As pessoas movidos pelo orgulho acreditam que não perdoar lhes proporciona mais conforto emocional do que perdoar[v]. Adoptam o rancor e o desejo de vingança. Perante a ideia do perdão sentem-se como se tivessem que descer da sua “superioridade” para um plano inferior.
Uma outra razão que motiva certas pessoas a não quererem perdoar é um certo sentido de justiça. É frequente ouvir-se dizer: “Eu jamais faria a alguém o que ele/ela me fez. Não admito que me façam a mim o que eu não faço aos outros”. É como se a pessoa atribuísse a si própria a qualidade de ser justa e exigisse dos outros uma conduta igualmente justa para consigo. O perdão é visto como uma forma de renúncia a princípios de conduta pessoal; o não perdão é tomado como equivalente à coerência com tais princípios. O perdão seria absolver o erro do outro, renunciar fazer um juízo negativo do que é inaceitável.
Uma terceira razão baseia-se na ideia de corrigir o outro. Essa motivação encerra as seguintes questões:
– Mas então não é importante que o outro compreenda que nos fez mal?
– Não é importante que tome consciência do seu erro? Que procure redimir-se e corrija a sua conduta futura?
Claro que tudo isso é importante. Se cada ser humano conseguir isso em relação ao outro, estará a contribuir para o desenvolvimento moral da humanidade. Mas a forma mais fecunda de o realizar não passa pelo rancor, a vingança, o ódio ou a raiva. Passa sim pelo perdão, como veremos adiante.
– Como persuadir do valor do perdão as pessoas que não querem perdoar?
As pessoas que não perdoam por orgulho são tomadas pelo rancor, o ressentimento, a raiva e o desejo de vingança. Essas emoções negativas serão experienciadas de cada vez que se lembrarem de quem não perdoaram. Assim, há uma fixação em situações negativas geradoras de emoções tóxicas; no polo oposto está a libertação e o desprendimento em relação a tais situações e a leveza de ser que essa atitude permite. Não perdoar por orgulho não traz pois conforto emocional, traz antes desconforto e stress.
Sobre o sentido de justiça que move certas pessoas, há que sublinhar que o perdão nada tem que ver com a renúncia a um juízo sobre conduta do outro. Perdoar não é passar a ajuizar como coisa certa o mal que alguém nos causou. Não é abdicar dos valores e princípios que nos regem. Há todavia uma diferença essencial entre ajuizar com a raiva, que nos tolda o discernimento, e ajuizar de forma tranquila e clarividente. O perdão é um processo que nos conduz à liberdade emocional em relação à ofensa ou mágoa que nos foi causada. É olhar para trás e já não  sentirmo-nos o desconforto emocional, é perceber que os sentimentos de ofensa, mágoa ou outros foram dissolvidos. E só essa liberdade emocional e leveza interior nos permitem ajuizar em paz e com clarividência a natureza da conduta do outro.
Em terceiro lugar abordemos a motivação de que o outro deve tomar consciência da sua conduta para ser corrigido. À partida trata-se de uma motivação positiva e construtiva para ambas as partes. Mas esse carácter construtivo só se confirma na condição de o resultado final for mutuamente pacificador. Se a pessoa, de algum modo molestada por outra, abordar esta última de forma recriminatória, numa linguagem agressiva, fará com que essa pessoa se sinta atacada. Isso levará a que a pessoa atacada passe a defender-se atacando também, em vez de se abrir à compreensão do ponto de vista da outra, à tomada de consciência da sua própria conduta e à eventual disponibilidade para se redimir. O resultado provável será uma violenta altercação, com acusações mútuas, o que agravará a carga negativa emocional entre ambas.
É por isso que muitas pessoas, antevendo uma situação de grande tensão e desgaste emocional, optam por ficar em silêncio, guardam a sua mágoa para si, entregando-se a pensamentos ruminantes, o que não é de todo saudável. Em contexto laboral, por exemplo, numa relação hierárquica, esta opção pode ser particularmente danosa. Se um subordinado for uma vez injustiçado ou mal tratado pelo seu chefe, o silêncio pode dar lugar a que idênticas situações se tornem frequentes. Se o superior hierárquico não estiver a agir de má-fé (não é o caso de assédio moral ou mobing), uma interpelação emocionalmente inteligente, por parte do trabalhador, pode restabelecer uma relação de trabalho saudável.
Assim, considerando a motivação de que o outro deve tomar consciência da sua conduta e corrigir-se, nenhuma das duas possibilidades antes referidas é recomendável: nem o ataque recriminador nem “engolir em seco” a mágoa sofrida. Ambas as escolhas são emocionalmente tóxicas.
Só o processo transmutador do perdão suplanta o dilema, aparentemente inevitável, entre a escalada da violência do ataque e o recalcamento sofrido do silêncio. Através do perdão alcançamos a clareza mental e o discernimento para uma abordagem tranquila e realmente inteligente junto da pessoa que nos magoou.
A pessoa que consiga alcançar esse estado vai perceber que não precisa de pensar no que vai dizer nem como dizer. Na hora tudo fluirá de forma natural e espontânea, a pessoa será cordial, saberá despertar a capacidade de empatia do outro, será ouvida com respeito e colherá frutos dessa atitude. E mesmo se a pessoa se dirige a alguém com predisposição agressiva, verá que a sua atitude desarma essa agressividade. A pessoa perceberá que a sua transformação tem o poder de transformar o outro e reconhecerá em si uma sabedoria que estava oculta.
 

3.4. As pessoas que “não são capazes” de perdoar

Há casos em que as pessoas sentem um desconforto emocional de tal modo doloroso, ao recordarem determinadas situações, que genuinamente sentem que não são capazes de perdoar. Não é a sua vontade que está em jogo, é sim o sentimento de impossibilidade de transcenderem tais situações no plano emocional. Imaginem-se os casos de abusos sexuais de crianças ou a violação de uma jovem. Mas não é necessário ir a exemplos tão extremos. Há muitas situações que constituem um lastro muito pesado para o corpo, a mente e o espírito das pessoas.
Os casos desta gravidade são os que mais recomendam o trabalho terapêutico do perdão. Muitas destas situações são daquelas em que não fará qualquer sentido pensar em termos de reaproximação pessoal entre o paciente e quem é perdoado. O foco é levar o paciente a libertar-se emocionalmente de quem o agrediu, de modo a permitir-lhe ficar em paz consigo próprio.
Há sofrimento emocional na abordagem dessas situações, mas é preciso passar por isso para que tenha lugar a seguir uma sensação de grande alívio e a cura possa acontecer.
É frequente as pessoas começarem por omitir essas situações por várias razões: por tais experiências estarem demasiado recalcadas, pelo desconforto que causam, ou por as pessoas terem vergonha perante si próprias e o terapeuta de terem passado por tais situações.
Apresentemos dois exemplos.
Uma paciente começou por referir o medo que tinha do pai, falando com alguma fluência sobre o assunto. Parecia estar ali o principal problema de perdão para tratar. Em seguida, tendo sido levada a recordar a sua experiência de escola primária, referiu o medo que tinha da professora, tendo contado vários episódios. Ao ser questionada sobre como eram os tempos de recreio com os seus colegas limitou-se a dizer de forma lacónica que na hora do recreio ficava sempre sozinha. Foi surpreendente verificar depois, com recurso a uma escala de desconforto emocional de 0 a 10, que a situação relativa ao pai estava no nível 4 e o isolamento no recreio se situava no nível 8.
Por sua vez, um paciente começou por referir que aos 10 anos um colega de escola o tinha tentado matar por afogamento. Prosseguimos a exploração, tendo ele acabado por admitir que havia uma outra situação mas que “isso não valia a pena falar, eram coisas daqueles tempos”. Percebemos a sua voz trémula, que os seus olhos ficaram em lágrimas e que a sua expressão facial se transfigurou. Em criança o seu pai amarrava-lhe os braços junto ao corpo e, nesse estado totalmente indefeso e desprotegido, agredia-o violentamente. O grau de desconforto emocional da tentativa de afogamento era de 2 e o da agressão era de 10.
Em ambos os casos, o problema de perdão mais grave não parte da iniciativa do paciente, sendo referido com dificuldade, de forma lacónica.  Todavia, a boa notícia é que em ambos os casos o processo terapêutico foi eficaz. No primeiro caso, logo no final da primeira sessão, o desconforto emocional passou de 8 para zero. No segundo caso, no início da sessão seguinte, o desconforto tinha passado de 10 para 1.
 

4. Conclusão

Mesmo nas situações severas o processo de perdão, induzido pelos Códigos de Cura, é capaz de realizar a transmutação emocional desejada. Pode às vezes ser necessário um tempo mais longo, durante o qual o desconforto emocional vai passando por diferentes graus de intensidade. Mas esse desconforto acaba por dar lugar a uma sensação de alívio, de paz interior, de leveza, de bem-estar. Para isso, muito contribui o diálogo interior que este processo desperta nas pessoas. Nesse diálogo interior o paciente torna-se magnânimo, introduzindo na sua perspectiva pessoal a avaliação das motivações do outro a sua quota de responsabilidade no sucedido, acabando, surpreendentemente, por encontrar atenuantes para a sua conduta.
Observamos que o semblante das pessoas se transforma, reflectindo a substituição da sombra interior pela luz. E isso não é um episódio momentâneo, é sim uma aquisição duradoira que se torna permanente com a continuidade do trabalho de cura.

Notas

[i] Loyd, A.; & Jhonson, B. (2011). The Healing Code. London: Hodder & Stoughton.
[ii]1.perdão, 2.comportamentos prejudiciais, 3.crenças não saudáveis, 4.amor, 5.alegria, 6.paz, 7.paciência, 8.aceitação, 9.bondade, 10.confiança, 11.humildade, e 12.controlo e equilíbrio pessoal.
[iii] No entanto é necessária a vontade e a decisão do paciente de colaborar e tomar parte activa processo do perdão.
[iv] É o próprio paciente que faz a aferição do seu grau de desconforto emocional recorrendo a uma escala de 0 a 10.
[v] Esta situação remete para uma outra categoria do sistema de cura que será recomendável trabalhar com o(a) paciente: a humildade.

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